27cc de mau humor bidestilado intravenoso

domingo, 18 de abril de 2010

Somos cães e gatos.

Ainda que neguemos, carregamos conosco não só os caracteres herdados de nossos antepassados, mas dos singelos pets que os acompanhavam desde áureos tempos. E obviamente, em virtude das constantes migrações e dinâmicas populacionais amplamente difundidas pelos antropólogos, carregamos diferenciações (e por que não dizer especiações) relativas aos que junto de nós atravessaram de desertos a dilúvios.

Existem aqueles que são cães. Demonstram uma fidelidade tão inconteste que ganham até até adjetivos específicos. Tidos como bobos, dóceis, quase imbecis, aturam surras e castigos verbais incessantes, sob a máxima de que "cachorro se ensina é no couro". Ledo engano. Cães são versáteis. Cães são dóceis mas são dotados de uma quase infindável gama de expressões faciais, sintomáticas quando necessárias para externar "poxa, tá me incomodando, para com essa merda senão eu te mordo. E mordem. Quando mordem, seus auto-proclamados "donos" se esquecem de todas as noites de vigília no batente da porta, todos os ameaços quando estranhos mal-intencionados assombravam a soleira, sequer se recordam de todo o vislumbre ofegante ao beiral da janela. E são então, os cães, defenestrados. Incapazes de trazer felicidade por seus rabos oscilantes, são sacrificados em prol de uma salvaguarda sentimental torpe e ignóbil, julgados sob o jugo de "terem se tornado sofredores, e portanto, inúteis". Aos cães, então, só resta o sacrifício. Mesmo que seus negros olhos não derramem sal, tinta e água, são olhos conhecidos e, por mais que se neguem, são olhos. Olhos conhecidos.

Em contrapartida, há os gatos. Ah, os olhos dos gatos. Furtivos, atentos, indomáveis como todo o resto do esguio e evoluído corpo dos gatos, os olhos. Cores não faltam a esses enigmáticos olhos, pérolas volumosas que desviam a atenção de suas patas. A Cleópatra mesmo se atribui a frase: "as patas dos gatos são macias somente para esconderem o fio de suas garras". E assim se faz a convivência com a maciez do passo átono de um felino. Não se ouve de onde vem, nã0 se sabe o que deseja, mas há nele um quê de fantasia, mistério, quase omissão de tão distante. Lambe-se por narcisismo, mas não há no felino limpeza maior que o colo de um afeto. Porém, nunca se sabe se o objeto de afeto se tornará, da noite pro dia, em um mero afiador de suas garras. Garras que não se prestam a ser vis, porém causam marcas que, não obstante de medo ou de vingança, não se lavam com água ou se cobrem com tinta. Afinal de contas, são garras. Obscuras são as intenções dos gatos, seus passos, atraentes como saltos altos, nos envolvem numa bruma digna de bruxas celtas e morenas de deserto. Mas são gatos, e sua natureza, assim como a dos cães e dos humanos, é inerente e imutável.

Cães e gatos sempre brigaram e sempre brigarão como cães e gatos. Enquanto isso, no meio do caminho, humanos se ferem, rosnam e se eriçam. Mesmo sem saber se são cães, gatos ou humanos. E ninguém nunca sai ganhando dessa guerra milenar e silenciosa.